De Molière a Fernando Pessoa

Teatro D.Maria II

De Molière a Fernando Pessoa
Aos 5 anos, Marta foi viver para França. Voltou agora como estudante de Erasmus e com Pessoa na mala

Catarina Homem Marques

Pam. Pam. Pam. Assumindo que estas onomatopeias são pancadas de Molière, e já que se está aqui a falar de teatro, significa que algo está prestes a começar. Neste caso, não é um espectáculo. Nem tão pouco um texto. Mas sim o interesse de Marta Serra por teatro, e por literatura, que nasceu no momento em que teve de estudar uma peça de Molière numa aula de Língua Francesa do oitavo ano.

“A minha relação com Molière nem é das melhores hoje em dia. Mas a verdade é que eu queria ser médica até esse professor me começar a mostrar o outro lado da literatura. Quando estudámos teatro, logo um texto de Molière, fazia-nos interpretar e eu fiquei a adorar essa possibilidade. A minha mãe é que diz que eu sempre fui uma sonhadora… e fiquei fascinada com a capacidade que os textos têm para nos transmitirem coisas que também existem nas nossas vidas.”

Agora, aos 20 anos, Marta quer ser crítica literária. E foi a estudar para isso que chegou há uns meses pela primeira vez a Lisboa. Conta isto tudo depressa, entusiasmada, num português seguro, que mistura o sotaque do norte com uma musicalidade que vem da língua francesa. Nasceu em Chaves, mas aos cinco anos foi viver para Lourdes, para onde os pais emigraram, sem nunca deixarem de falar português em casa. “Estou-lhes muito grata por isso. Nunca perdi o português, nem sequer o sotaque”, brinca. E isso também lhe aumenta as possibilidades agora que voltou, através do programa Erasmus, pelo menos durante seis meses – mas já com vontade de regressar também para um estágio.

“Quando fui para França, no início foi complicado: não sabia uma palavra de francês. Mas acho era a idade certa. Entrei na primária e em três meses aprendi. É uma idade em que ainda estamos todos a aprender. No meu 12.º ano, havia dois portugueses na minha turma, e os professores comentavam muitas vezes que era engraçado que os testes de língua francesa corressem sempre melhor a nós.”

Em Lisboa, está na Universidade Católica a estudar comunicação. Mas em França, numa universidade de Toulouse, estuda Literatura. “Lá é só a partir do mestrado que se pode ir para Jornalismo, sob concurso e com uma entrevista.” No caminho para chegar até à profissão que a mãe também sonhava ter, tropeçou então em livros que a fizeram tropeçar no teatro – foi um livro de Samuel Beckett que a fez ir pela primeira vez ver uma peça em Toulouse, por exemplo.

“Tinha lido o livro no 11.º ano, mas fiquei sempre curiosa sobre como seria aquilo em palco. Quando já estava na universidade, a minha melhor amiga mandou mensagem a dizer que aquela peça ia ser apresentada. Chegámos lá e era um teatro mesmo pequeno, independente, estávamos muito perto dos actores e do palco, e foi uma experiência muito forte. Adorei. Ao ler não havia aquela sensação… parecia que o que ele nos queria transmitir com a peça, de estarmos ali presos entre a vida e a morte, foi ainda mais intenso ao vivo. É isso que é muito bom no teatro.”

Em Lisboa, conheceu o projecto Primeira Vez numa aula de Públicos e Audiências, e de outra forma talvez numa tivesse ido ao Teatro Nacional D. Maria II. “Acho que se passasse pelo D. Maria II de carro, sem mais informação, mais facilmente acharia que era uma embaixada ou assim, com aquele edifício…” Viu “Antígona”, uma encenação de Mónica Garnel, e até encontrou paralelismos com uma encenação que tinha visto em Toulouse, “assim também mais punk e underground”, do “Macbeth” de Shakespeare.

“Quando se entra, é verdade que o teatro é um bocado… ufa, parece que esmaga. No Festival Eminente, sobre o qual fiz uma reportagem para a universidade, tinha assistido a uma palestra com a Selma Uamusse sobre os jovens não se sentirem representados na cultura. E ela dizia que até ela, quando ia lá cantar, sentia um grande peso, que era um lugar um bocado sagrado. Percebi o que ela queria dizer. Se calhar as pessoas sentem-se intimidadas, mas depois a peça não teve nada a ver com isso. Gostei muito desse contraste… já conhecia o texto e já o achava muito aberto para aquela altura, com a questão do lugar da mulher na sociedade, mas não imaginava que pudesse ser assim em palco.”

Marta não consegue perceber que em Portugal as pessoas da idade dela não aproveitem as oportunidades para ir mais ao teatro: “Fiquei chocada no dia em que descobri que a maioria das pessoas da minha turma aqui nunca tinha ido ver uma peça.” Também não entendeu quando uma colega portuguesa lhe disse que achava a arte urbana “um vandalismo”. “É que Lisboa tem arte urbana magnífica, é tão lindo. Mas se calhar esta estranheza vem de eu ter um grupo de amigos mais alternativo em França, ou do facto de Toulouse ser uma cidade particularmente artística. Tenho a certeza de que qualquer pessoa da minha idade ia adorar ir ao Festival de Avignon, por exemplo. É só teatro e é uma loucura. Será que as escolas portuguesas não poderiam organizar excursões dessas?”

Outra possibilidade para a estranheza, admite Marta, é o facto de sempre ter idealizado muito Portugal. “Estando longe, desenvolvi este amor que me faz gostar de todos os mitos portugueses: a história de D. Sebastião, a beleza do 25 de Abril, a palavra saudade, o fado. Aliás, estou à espera que a minha mãe me venha visitar para irmos juntas a uma casa de fados.” Também por isso, e por adorar poesia e aquele poeta em particular, quase chorou quando a mãe lhe deu no Natal o “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa. Agora, quer também conhecer melhor o teatro português, sobretudo se tiver oportunidade de descobrir peças escritas por autores nacionais contemporâneos.

É que Marta não quer apenas ser crítica literária. Gosta muito de ler, mas também tem vontade de escrever. “Tive uma professora muito lírica que me inspirou a escrever poesia. Ainda por cima foi naquela idade em que a pessoa anda à procura de si. Mas acho que a poesia é uma coisa que vai e vem. Digo muitas vezes à minha mãe que gosto de escrever por causa da minha insegurança, dá-me adrenalina. No dia em que já não tiver medo de escrever, e espero que isso aconteça muito tarde, é o dia em que vou deixar de o querer fazer.” Entretanto, também já avisou a mãe de uma outra coisa: quando voltar de Lisboa para casa, é provável que vá fazer uma tatuagem com o rosto de Fernando Pessoa para a acompanhar a vida toda.



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