A (re)descoberta de um país pelos palcos

Teatro D.Maria II

A (re)descoberta de um país pelos palcos
Carolina procurou o teatro no regresso a Portugal e partilha-o agora com Elizabeth

Gonçalo Frota

Embora já se tivesse aproximado do teatro em Portugal, durante a adolescência, Carolina Mesquita só se apaixonou a sério pelas artes dramáticas durante os quatro anos em que viveu em Londres. Rodeada de uma cultura teatral quotidiana, em que a visita às salas de teatro faz parte da natural lista de afazeres semanais, Carolina deixou-se encantar por produções mais pequenas e independentes – frequentemente “um monólogo ou apenas duas pessoas no palco”, descreve –, quer tivessem lugar num teatro convencional ou numa sala de estar transformada no centro do mundo durante um par de horas. Ao mesmo tempo que encurtava a distância física a que se encontrava dos actores e das histórias que se desenrolavam mesmo ali à sua frente, reduzia também a sua distância para com o próprio teatro. Enquanto espectadora, Carolina passava a sentir-se integrada, parte de cada peça, em vez de ser uma observadora afastada das personagens que expunham as suas angústias e que quase podia tocar se estendesse o braço na direcção do palco.

Há dois anos, quando decidiu voltar para Portugal, foi dessa sensação – a de sentir-se viva e implicada numa sala de teatro – que foi à procura. Essa sensação que acabou por encontrar através do Primeira Vez. Foi um dos gestos que Carolina desenhou no regresso ao país, tentando religar-se através de uma exploração do país através das artes. O outro gesto fundamental deu-se com a certeza de que “queria contar as histórias das velhinhas que ninguém conta e que se vão perder, das mulheres que têm hoje 70, 80 ou 90 anos”. E foi assim que, depois de se confrontar com a pergunta “Se ando a viajar pelo mundo, porque é que não viajo mais pelo meu país?”, decidiu partir para o Norte de Portugal e aventurar-se de bicicleta por povoações que desconhecia. Sempre que chegava a algum desses lugares, ia até ao café local e pedia que lhe indicassem quem era a senhora mais idosa, a guardiã da memória daquele lugar, que lhe pudesse contar a(s) história(s) do sítio onde se encontrava, a partir de uma perspectiva feminina do dia-a-dia e não da narração de feitos heróicos.

Depois de vencer as resistências e as desconfianças iniciais das suas interlocutoras, Carolina foi sendo autorizada a puxar pelas recordações, algumas delas desenterradas das profundezas de uma memória que há muito tempo não se dedicava a frequentá-las. “O que depois escrevia não era um copy-paste da entrevista que tinha feito”, conta. “Era mais a minha experiência de ter falado com aquela pessoa e sobre aquele sítio.” Foram esses escritos que acabou por reunir num livro que “não é de etnografia nem de antropologia” – “Porque são histórias de cada pessoa, mas a minha história também está ali metida”, justifica. A acompanhar os vários relatos que compõem o miolo de As Matriarcas – assim chamou Carolina ao livro financiado por uma campanha de crowd funding –, uma série de fotografias das protagonistas, captadas numa outra dimensão pelo olhar de Carolina.

Mais do que um livro, As Matriarcas foi um meio para Carolina voltar a entrar na vida de um país a partir de uma história oficiosa feita de mulheres como referências da sua comunidade. Parece, por isso, bastante adequado que a sua experiência inaugural com o Primeira Vez tenha acontecido com a Antígona que Mónica Garnel encenou em 2019, peça que acompanha a revolta da personagem grega com o mesmo nome do texto, e que se recusa a acatar uma decisão autoritária e despótica, defendendo o direito à dignidade humana em oposições à obediência diante do grotesco. Na altura, foi também um dos primeiros exemplos da vida artística portuguesa que partilhou com Elizabeth Miller, a sua companheira de vida, chegada a Portugal a partir do estado norte-americano do Kentucky.

As duas conheceram-se no Verão de 2018. Elizabeth viajava sozinha pela Europa e estava em França quando começou a pensar que não seria má ideia ir até Londres - cidade por onde já tinha passado numa outra ocasião, mas que “nunca tinha visto realmente nem explorado”. Decidiu fazer-se ao caminho e ficar alguns dias, coincidindo na capital britânica com Carolina – numa altura em que começava a despedir-se da cidade e a preparar o regresso a Portugal. “Conheci a Carolina de uma forma que nunca pensei que alguma vez pudesse conhecer alguém na minha vida – num bar”, conta Elizabeth. Esse encontro improvável, no entanto, dar-se-ia na altura certa. Ambas estava num momento de viragem – Carolina a terminar o seu ciclo londrino, Elizabeth a terminar o contrato que a ligava à universidade onde leccionava Inglês – e perceberam que a vida se encarregara de lhes unir os destinos.

“Não sabia grande coisa de Lisboa”, recorda Elizabeth. “Mas googlei imediatamente e decidi ‘OK, vou’.” Antes de se mudar, no entanto, ainda voltou ao Kentucky e, numa introdução à cultura portuguesa – enquanto forma de se projectar antecipadamente na sua vida com Carolina em Lisboa –, havia de se aventurar a escutar fado. Primeiro, como é natural, estranhou. “Agora adoro”, confessa, “e é interessante porque é mesmo necessário estarmos no sítio para podermos apreciar certas coisas. Agora tenho uma outra interpretação do fado e oiço-o cruzado com todas as coisas aprendo sobre Portugal, todas as pessoas que vou conhecendo, toda a comida, tudo...”

O fado tem sido, afinal, uma das portas de entrada na cultura portuguesa que Carolina tem procurado plantar em Elizabeth. A par dessa investida, que passou já por concertos de Camané e Ana Moura – está ainda em falta a exploração das casas de fados –, a paixão de ambas pela poesia tem levado à partilha dos versos de António Nobre, José Régio, Florbela Espanca ou Natália Correia, num confessado espelho da tendência mais dramática do gosto de Carolina. Elizabeth, que já se abalança a ler umas primeiras obras em português, aponta como objectivo chegar a Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago – depois de ter já lido o texto na tradução inglesa. “Uma das coisas melhores em aprender línguas diferentes é poder ler mais livros, porque perde-se sempre algo nas traduções”, acredita.

A experiência de entrar no Teatro Nacional D. Maria II faz parte também, naturalmente, desta calma imersão de Elizabeth – que cresceu a assistir a peças de Shakespeare num parque da sua cidade (Ludlow) durante os meses de Verão – na cultura portuguesa. Tanto pelo contacto com as propostas artísticas locais como pelo contexto que proporcionam. Da mesma forma que Elizabeth sente que a sua interpretação do fado se faz através do conjunto de vivências do país – do conhecimento histórico à gastronomia –, também as idas ao teatro (tal como ao cinema ou a um concerto) lhe permitem “aprender com as situações”. “Sinto que as experiências mais clarificadoras que tive foram as de ouvir as pessoas falarem sobre estes espectáculos. Claro que tenho a minha interpretação, mas aprendo sobretudo a ouvir os outros, antes de mais.” E é essa escuta atenta que permite a Elizabeth perceber o país e a cidade onde vive, conhecer a sua História e os valores de quem a rodeia, reconhecer olhares e perspectivas sobre as mais variadas questões.

E, na verdade, é esse o papel que o teatro cumpre fundamentalmente na vida de cada um – levar-nos a perceber e reflectir sobre o mundo que nos é mais próximo ou mais distante, tentar chegar ao olhar do outro, aprender com isso e questionar as nossas certezas e convicções diante daquilo que nos é proposto. Com a mesma curiosidade e disponibilidade de quem se vê diante de um lugar novo pela primeira vez.



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