O teatro nos olhos de Fátima

Teatro D.Maria II

O teatro nos olhos de Fátima
Fátima Lopes vive perto do teatro. Mas essa proximidade nem sempre lhe permite ver o palco.

Gonçalo Frota

Os olhos de Fátima Lopes acusam a presença em palco de Isabel Abreu. De cada vez que a actriz entra em cena, na pele da directora do teatro de Cristina Vidal – a fictícia directora do Teatro Nacional D. Maria II na altura em que a ponto ali começou a trabalhar – ou enquanto uma das personagens que Tiago Rodrigues recupera em Sopro de peças de Tchékhov, António Patrício, Racine, Molière ou Sófocles, Fátima não tem como evitar: a comoção é evidente, os olhos inundam-se de lágrimas que tentam por tudo não a expor e não lhe invadir o rosto, e só consegue prestar atenção a cada gesto e a cada palavra que Isabel Abreu desenha em palco.

Fátima Lopes não é uma daquelas admiradoras que conhece todos os papéis dos seus ídolos de cor, não é alguém que construiu uma obsessão enquanto espectadora a partir das vidas que viu no palco ou no ecrã. Não é um daqueles casos em que imaginou na sua cabeça uma relação real com uma personagem que se infiltrou para sempre na sua vida. É simplesmente alguém que conhece Isabel Abreu desde que esta era criança ainda. É alguém tão próximo, tendo trabalhado para a mãe de Isabel e agora para a actriz – primeiro em Arronches, no Alentejo, agora em Lisboa –, que não consegue ver apenas a actriz Isabel Abreu em palco. Os seus olhos vêem sempre mais além.

Daí que tenha saído muito irritada quando assistiu a Dança da Morte, de Strindberg, e viu Isabel a ser (ficcionalmente) agredida por Miguel Guilherme; daí que tenha chegado a maldizer Albano Jerónimo pelos maus tratos que a sua personagem infligia à personagem de Isabel Abreu na curta-metragem Mariphasa, de Sandro Aguilar. “Se o apanhasse, nem sei o que lhe fazia”, desabafa Fátima. Mas logo em seguida deixa escapar uma gargalhada, como quem assegura que sabe distinguir a realidade e as aproximações à realidade que a arte pode procurar. “Eu sei que é tudo ficção, mas tenho medo de me comover.” Não há medo que resista, no entanto. Fátima comove-se, vibra com aquilo a que assiste em palco, e logo vida e ficção se confundem novamente. Não porque aquilo que aconteça em palco possa ser tomado por aquilo que não é; mas porque, nos seus melhores momentos, o teatro joga-se na fronteira, passa rente aos nossos dias e contagia-os de alguma maneira.

Como em qualquer casa de ferreiro, também neste caso o espeto é de pau. Ou seja, mesmo trabalhando numa casa em que o teatro faz parte da vivência quotidiana, Fátima poucas vezes se senta numa sala para assistir a uma peça. No caso do Teatro Nacional D. Maria II, apesar de se ter mudado de Arronches para Lisboa há três anos, acompanhando a família da actriz, é a primeira vez que transpõe as portas da sala. Talvez porque, no seu passado alentejano, os espectáculos não faziam propriamente parte dos hábitos diários. O pai trabalhava no campo e, em pequena, a simples caminhada para a escola podia constituir uma pequena aventura. Como tinha de deslocar-se até à vila, à distância de sete quilómetros, nos dias que o Inverno reclamava como seus com frio e chuva, havia que tentar minorar os estragos da caminhada: “O meu pai tinha uma bicicleta com um cesto e então, como éramos três irmãs a viver lá em casa, ele primeiro levava a mais velhinha até meio do caminho, depois voltava para ir buscar a outra e ia fazendo assim, para não andarmos tanto a pé com aquele tempo.”

Ainda assim, diz, a infância foi feita de uma felicidade em que a imaginação também era posta a trabalhar em pleno. Na ausência de outras alternativas, as irmãs faziam dos gatos os seus brinquedos. “Os gatinhos eram os filhos, as pedras eram os alguidares e as ervinhas fingiam ser comida”, conta. “E cuidávamos deles como se fossem nossos, como se os tivéssemos tido nós.” Essa imaginação acabou, como amiúde acontece, por ser domada com a chegada da vida adulta. Mas apenas ligeiramente, porque a alegria de Fátima Lopes não se esbateu e, com alguma frequência, seguindo de longe os passos da actriz que conhece mais de perto, improvisa e grava em vídeo as peças de teatro instantâneas a que dá vida em casa de uma amiga. Põe um lenço à cabeça, arqueia as costas, deixa as mãos a segurar nas ancas e transforma-se numa “velha alentejana”, mandada à rua pelo marido para comprar bolos.

Caricaturas que a transportam para as suas origens e que a deixam tão em transe que, no final de uma dessas representações espontâneas, acabou por cair das escadas da casa da amiga e ficou uma semana em repouso, sem poder andar. Pior do que isso, aliás: sem poder dançar. “Tive de deixar de ir aos bailaricos por uns tempos porque não podia calçar o sapatinho de salto alto e só com salto alto é que sei dançar”, garante. Porque desde que se mudou para Lisboa – “o Alentejo é pequeno de mais para mim”, costuma atirar em jeito de brincadeira – Fátima é uma frequentadora assídua das danceterias em que se transformam a Casa do Alentejo, os Bombeiros da Amadora ou o Ginjal nalgumas tardes de fim-de-semana.

Os bailaricos não faltam também no encerramento de arromba dos almoços de convívio entre alentejanos a que dedica muito do seu tempo. Fátima começou por sugerir um encontro num grupo de Facebook que juntava 20 mil pessoas. A proposta rapidamente encontrou entusiastas, mas os administradores do grupo, sentindo-se ultrapassados, deram-lhe um raspanete. Fátima fez a trouxa, criou o seu próprio grupo e agora diz que tem de estar em permanência de guarda ao telemóvel porque as mensagens não param de chegar.

Agora são quatro mil membros, sempre dispostos a acompanhá-la nas suas propostas de almoços e passeios, de Marvão, Castelo Vide e Avis a Arronches ou Moura. Ou, quando não é possível sonhar com a terra propriamente dita, lá se encontram na Casa do Alentejo e celebram as origens comuns, de quem vive na capital mas não esquece o sítio de onde veio. “Não devíamos perder as nossas raízes e as nossas tradições”, defende Fátima, “porque isso é muito bonito. E há muita gente que ao vir para Lisboa se esquece do Alentejo ou da sua região. Esquecem-se das tradições, das origens, dos costumes, dos hábitos. Mas eu não esqueço e não vou esquecer nunca.”
Não se esquece dos fritos na noite de Natal, do pai e dos tios a tocarem zabumba e a cantarem “ao menino”, das paragens que faziam em cada casa para um copinho e um petisco, não se esquece de voltar da escola e a avó ter uma panela de água ao lume para as crianças aquecerem as mãos à chegada. Não se esquece das azevias, dos ensopados de borrego ou da sopa de cachola. Não é certo que seja todo esse passado a desfilar diante dos seus olhos quando vê Isabel Abreu em palco, mas há algo de toda essa vida partilhada com a actriz que se assoma de cada vez que a ouve falar numa sala de teatro. Porque as personagens colam-se a um rosto e a uma voz que conhece bem. E dizem-lhe sempre muito mais do que qualquer fala.

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