Quão frágeis somos nós?

Teatro D.Maria II

Quão frágeis somos nós?
No palco como na vida, na vida como no palco, Rambert mistura tudo para fazer Teatro.

Catarina Homem Marques

Há telefonemas amorosos, telefonemas indignados, telefonemas utilitários, alguns que são rápidos e outros que se prolongam, telefonemas felizes e outros tristes. Às vezes, há uns que não se quer atender, e outros que se atendem sem saber o que se vai encontrar do outro lado da linha. «Alô, quem fala?» ou «Estou… o que queres desta vez?». E depois, raramente, no meio do ruído, há telefonemas que não se esquecem – como aquele que Beatriz Batarda, ou a personagem de Beatriz Batarda, ou Beatriz Batarda e a sua personagem fazem à mãe, a uma mãe, em palco, com um telefone sem fios que o encenador arranjou para tornar tudo mais real. Será possível que seja real?

Em Teatro, de Pascal Rambert, a peça que está em cena no Teatro Nacional D. Maria II até 14 de Outubro, é possível que o telefonema seja real mas também o seu contrário. Aliás, a actriz até avisa que vai ensaiar antes de pegar no telefone. Está tudo escrito, e ela combina com o encenador, ou com Rui Mendes, o actor que faz de encenador, como vai decorrer a cena. Mas se é assim, como é que parece que se entra mesmo naquela “intimidade que é uma vida de mulher”? Faz parte do jogo, dirá o entendido em teatro. Faz parte do jogo, aceitará o espectador de teatro. E mesmo assim, quando a actriz acaba o telefonema e começa a soar a voz de Sting a lamentar-se numa música de como somos frágeis, o que se sente estará muito próximo da verdade.

“Eu escrevo fluxos de consciência, momentos em que as pessoas se soltam, se põem verdadeiramente a falar. Tenho estes corpos, estas energias, não tenho plano. Nunca escrevo sobre a história íntima destas pessoas, mas sei que a Beatriz é uma apaixonada, que trabalha loucamente, ensaia, cuida das crianças, faz mil coisas. E depois o Rui diz-me: sabes que o meu avô era actor? E eu sei que a minha peça vai começar com a palavra avô. E que isso me vai levar até ao fim da peça. E é assim que a escrita se vai fazendo. A verdade é que me deixo levar. O que me interessa é fazer as pessoas falarem”, explica o criador e encenador da peça na entrevista para a folha de sala, ele que tem sempre uma fotografia dos actores com quem está a trabalhar enquanto está a escrever para eles.

As costuras estão lá expostas desde o início, quando o público entra na sala. E por costuras, deve entender-se o palco despido, a preparar-se, com cuidado, com tempo, como quem se vai pondo a postos para o que vai acontecer. A caixa cénica está à mostra e vão desfilando as bambolinas, o pano de fundo, as varas de projectores, tudo o que é preciso para montar uma peça. E quando se instala um foco de luz, é para se usar, um pouco como a regra de Tchekov sobre a arma que, se aparece, tem de ser disparada. Nada pode ser mais teatro dentro do teatro do que este cenário que se vai montando numa peça que não se chama Teatro por acaso.

Como o encenador realça: “As nossas vidas misturam-se com a nossa arte. Eu não conto histórias de carpinteiros ou camponeses. Vivo no centro de Paris, trabalho no mundo inteiro, conheço gente de culturas muito diferentes, falo línguas, e passo a minha vida em ensaios. Então conto histórias de teatro. Através dessas histórias de teatro falo sobretudo de relações amorosas e da relação com a morte – a minha, a dos meus pais que são mais velhos que o Rui, o desaparecimento de actores idosos com quem trabalhei.”

A questão é mesmo essa – é que dentro do teatro não cabe apenas o referido jogo do próprio teatro, aquele que serve de ponto de partida a esta peça, que faz com que Rui Mendes seja o encenador que tenta conduzir um ensaio com Beatriz Batarda, primeiro, e com Lúcia Maria e João Grosso, depois, para ser interrompido por Cirila Bossuet, a empregada de limpeza que afinal é estudante de ciências políticas e que, no fim, pode ser muito mais do que isso.

Dentro do teatro, e do Teatro, cabe também um homem que fala com o avô que já morreu e se pergunta se ele também teria ido assim até à boca de cena; cabe dizer que já se deu muitos abraços e já se deu muitos beijos debaixo dos holofotes; cabem a mãe e a filha que não se entendem; um Romeu velho e uma Julieta velha; uma “Ode Marítima” de outras andanças; cabem gatos de loiças e antigos bailarinos que agora trabalham com seguros, mesmo que nos anos 70 tenham ajudado a fundar a companhia nacional de bailado de Angola. Ou seja, cabem vidas inteiras, com aquela responsabilidade acrescida de se ter um público, de ter de “tornar colectivo o que é privado”, como diz a personagem de Rui Mendes, ou como diz Rui Mendes, ou como diz Pascal Rambert.

“A língua é importante – e o seu contexto também – mas acho que somos todos muito parecidos. E isso é uma posição política. Porque de cada vez que alguém diz, volta para casa, ou eu aqui, tu aí, é uma atitude falsa. As reacções à perda de um ente querido, à morte de uma criança ou a uma nova paixão – que são os temas que trato no interior do tema teatro – são universais. Toda a gente que perde alguém chora.”

Os seres que estão ali são “seres que moram no palco e que falam”, mas são também essas pessoas que, fora do palco, choram quando perdem alguém, ou que se emocionam quando têm de celebrar a vida de alguém que conhecem há muito tempo, ou que reclamam do trânsito e de como esta cidade está impossível e cruel para quem quer viver nela, ou que gravam vídeos dos pais para registar a sua invulgar história de resiliência. E isso, como nos mostra Teatro, tanto vale para as personagens, como para os actores, como para as pessoas que estão na plateia a assistir.

“O que me interessa é o amor entre os seres. A separação. São pequenos nadas, mas é gigantesco. É trabalhar com alguém durante 30 anos e fazer um bolo para agradecer. É isso a vida. Não é fazer grandes discursos, um bolo chega.” E às vezes chega uma peça de teatro para nos lembrar disso.

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