Prova de fogo de Beatriz Maia

Teatro D.Maria II

Prova de fogo de Beatriz Maia
Estagiária na última temporada, a actriz calou medos e encontrou o prazer do palco

Gonçalo Frota

O processo de selecção dos actores estagiários que, durante uma temporada, integram a equipa do Teatro Nacional D. Maria II começa habitualmente com uma audição. Aos estudantes finalistas da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) é então pedido que apresentem uma história, real ou ficcionada, à sua escolha. No caso de Beatriz Maia, a sua proposta assentou no relato de um espectáculo a que assistiu precisamente na Sala Garrett. Na verdade, o relato focava-se não tanto no espectáculo em si, mas nos longos minutos de um medo paralisante que viveu ao assistir a uma reposição de "Bovary", criação de Tiago Rodrigues a partir do julgamento de que foi alvo Gustave Flaubert pela autoria do romance Madame Bovary – à época considerado chocante pela conduta sexual da protagonista, tida como promíscua e libertina, resultando num alegado “atentado à moral e à religião”.

Beatriz Maia tinha sido espectadora das primeiras representações de "Bovary", no Teatro São Luiz, numa altura em que frequentava a escola do Teatro Experimental de Cascais e levava a cabo uma investigação sobre protagonistas femininas, com vista à Prova de Aptidão Profissional. Passados pouco mais de um ano, voltou a sentar-se diante de Bovary. Acontece que a sessão a que Beatriz assistiu, com a sala não muito cheia, teve lugar em Novembro de 2015, uma semana depois do atentado terrorista no Bataclan, em Paris. Ao seu lado, no início do espectáculo, estava uma senhora totalmente vestida de preto, com o corpo todo coberto, que pousou na cadeira entre as duas um saco de ginásio. “Eu não só sou hipocondríaca como tenho a mania da perseguição em relação a uma série de coisas e sofro por antecipação”, confessa a actriz. As duas sozinhas na fila, Beatriz via-se repentinamente focada em cada gesto “suspeito” da senhora, que remexia no saco, enquanto na sua cabeça rodopiava a ideia de que também aquele espectáculo se passava em Paris. E que Emma Bovary seria, facilmente, o símbolo de uma conduta condenável aos olhos dos mais variados fundamentalistas.

Enquanto era tomada pelo medo, Beatriz sabia também que activava “um preconceito gigante”. E ali ficou paralisada, vendo a senhora abandonar a sala e deixar o saco na cadeira, para depois voltar e sair em definitivo. Nos momentos mais descontrolados, a jovem actriz pensava que não avisara ninguém de que tinha ido ao teatro e, no caso de algo mais dramático lhe acontecer, poderia demorar a ser reconhecida; por outro lado, tentava lutar com o preconceito que vira activado em si e que queria rejeitar com todas as forças.

Foi esta a história que levou consigo à audição no Teatro Nacional, omitindo o facto de ter acontecido numa sessão de "Bovary". Outros candidatos houve que improvisaram a sua história no momento; e houve quem levasse versões muito encenadas dos seus monólogos. Beatriz limitou-se a relatar aquilo que lhe acontecera. “Achei que era mais seguro ter uma história que fosse fiel a mim própria e que estivesse organizada, pensada, estruturada”, conta. Mas não se preparou em demasia. É uma regra que adoptou para todas as suas audições: deixar sempre algum espaço para a intuição e não se esmifrar a antecipar cada segundo ao pormenor. Na verdade, acredita até que há “um ligeiro desleixo” na sua postura que funciona e até lhe dá “alguma piada”. “Gosto de deixar que as coisas aconteçam, não pensar tudo demasiado, porque senão somos robots e isso é uma seca para quem vê”, acrescenta, pensando já no momento de subida ao palco. “Acho que aquilo que mais procuro é humanizar.”

Foi isso que tentou fazer com Pete, a personagem que lhe coube na peça "A Matança Ritual de Gorge Mastromas", o texto de Dennis Kelly que Tiago Guedes encenou no Teatro Nacional D. Maria II, quase a fechar a temporada 2018/19. De início, este espectáculo não estava sequer nos planos. E, portanto, depois da sua participação nas Leituras Encenadas (com o monólogo "Osmarina Pernambuco Não Consegue Esquecer", de Keli Freitas, e com "Call Center", de Ricardo Correia) e na "Alice no País das Maravilhas" dirigida por Ricardo Neves-Neves e Maria João Luís, Beatriz Maia deveria ter começado a trabalhar numa outra peça – que acabou por cair. Mas, pouco depois, era indicada para integrar o elenco da peça que foi a grande prova de fogo no seu ano de estágio.

Mais do que em qualquer outro momento da temporada, Beatriz deixou-se tomar pelo pânico. Um pânico controlado, até gerador de uma adrenalina positiva, mas desencadeado por se encontrar em palco com um elenco muito mais experiente, em que se contavam Bruno Nogueira, António Fonseca, José Neves, Rita Cabaço, Inês Rosado e Luís Araújo. “Até depois da estreia achei que estava a estragar o espectáculo, que aquilo que eu fazia estava a matar tudo aquilo que os outros estavam a construir”, confessa. Mas o encenador tratou de acordá-la para a realidade de que Beatriz não estava em nenhum patamar diferente da restante equipa. Reconquistada a segurança, começou a divertir-se mais em palco com o texto e com o grupo.

Beatriz Maia começou a ser actriz aos dez anos. O realizador João Rosas, irmão de uma das suas melhores amigas, viu nela a miúda de que precisava para protagonizar a curta-metragem "A Minha Mãe É Pianista". Mas, pensando bem, reflecte Beatriz, talvez tenha começado três anos antes, quando nos acampamentos e acantonamentos dos Escuteiros começou a participar em peças de teatro amador. Aos poucos, foi percebendo o prazer que retirava dessas apresentações fugazes e a ganhar conforto com a exposição. “Se calhar, foi por isso que o João me escolheu – uma miúda toda eléctrica e com esse à-vontade”, imagina.
Dessa experiência inicial com João Rosas ficou a vontade de trabalhar como actriz e de fazer mil e uma coisas diferentes na representação. Só que Beatriz precisou vencer uma preguiça que foi uma sombra durante os primeiros tempos – “não tinha paciência para ver filmes, não lia”, lembra – e só quando se matriculou na escola do Teatro Experimental de Cascais é que assume ter começado “a ganhar o gosto e a vontade de fazer isto para a vida”. “Cascais acordou-me, pôs-me a ler e agora estou sempre a ver espectáculos e filmes, a estimular-me para aprender mais.” Cascais deu-lhe a estrutras e as bases, o teatro clássico e o fôlego para depois chegar à ESTC e aprender a liberdade de definir o seu percurso dentro da escola e do teatro que lhe interessava fazer. Esse choque entre as duas escolas, entre regras e livre arbítrio, admite, ter-lhe-ia sido mais difícil de integrar se não fosse pela experiência de ter passado pelas mãos de Beatriz Batarda ainda em Cascais. “Ela mudou muito a minha forma de ver as coisas”, reconhece. E lembra o quanto foi importante assistir à peça "As Criadas", no Teatro Nacional, num palco partilhado por Batarda, Sara Carinhas e Luísa Cruz. “Percebi que tudo aquilo que nos ensinou ela põe realmente em prática – e isso faz-nos acreditar na Beatriz enquanto professora e enquanto pessoa.”

Neste momento, Beatriz Maia diz-se a viver “uma ilusão maravilhosa” de ter sucessivos projectos que lhe garantem trabalho até 2021 – vai fazer substituições no elenco que apresenta "Sopro", de Tiago Rodrigues, um pouco por todo o mundo, assim como integrar a equipa que trabalhará com Tiago na sua nova criação, "Catarina e a Beleza de Matar Fascistas", a estrear em Junho do próximo ano, e voltar a trabalhar com Maria João Luís em "Sonho de Uma Noite de Verão". Ainda assim, imagina que um período de menor actividade possa voltar a colocá-la atrás do balcão da loja onde trabalhou durante o curso na ESTC. A loja onde, certa vez, vendeu uma caneta à encenadora brasileira Christiane Jatahy – que se viu obrigada a cancelar a direcção do projecto final do curso de Beatriz por dificuldades de agenda. Jatahy despediu-se dizendo-lhe que “coincidências não existem” e que um dia ainda se voltariam a cruzar. Estas palavras ficaram gravadas na cabeça de Beatriz. E, se depender da actriz, esse dia não vai demorar a chegar.



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