Sílvio Vieira

Teatro D.Maria II

Sílvio Vieira
Actor estagiário na última temporada, descobriu no Nacional um espaço de afectos e cumplicidades

Gonçalo Frota

Ao olhar para trás, para o momento em que foi admitido como aluno da Escola Superior de Teatro e Cinema, Sílvio Vieira ainda sente “um misto de felicidade e de tristeza”. “É uma área que traz muita dor e que é muito difícil, por vários motivos”, desabafa o actor que foi um dos seis estagiários a subir aos palcos do Teatro Nacional D. Maria II ao longo da temporada 2018/19. “Por um lado, fico muito contente; por outro, às vezes amaldiçoo o dia em que decidi seguir por este caminho.” Não é fácil ter certezas em relação a uma profissão que se desenvolve sobre alicerces de contínua instalabilidade, mas tornou-se claro, ainda assim, que o curso de Sociologia que levou Sílvio de Fátima até Lisboa se iria tornar apenas fonte de frustração.

A sociologia, na verdade, continua a interessar-lhe – e a abastecer até as suas criações teatrais. Mas o curso foi certamente um balde de água fria nas suas expectativas e Sílvio começou a perguntar-se como seria a sua vida se tomasse um outro rumo. Um rumo que explorara, sem ambições de maior, ao longo dos últimos dois anos do ensino secundário, quando passou a destinar as suas sextas-feiras ao grupo de teatro do colégio católico que frequentava. Primeiro, participou em "O Principezinho", de Saint-Éxupery, depois veio "A Comédia da Marmita", de Plauto, tendo sido o escolhido pelo professor de Educação Moral e Religiosa Católica, também encenador do grupo, para dar corpo e voz a Euclião, o protagonista da peça.

Na altura em que se apresentou para a audição na ESTC, o texto de Plauto era praticamente todo o teatro que conhecia. Arredado do contacto com uma programação teatral regular, Sílvio tinha assistido a três peças na vida – entre as quais, um Gil Vicente e um "Quem Tem Medo de Virginia Woolf?" com Maria João Luís e Virgílio Castelo, no D. Maria II, em excursão a Lisboa. Daí que, género “bicho do mato”, descreve – tendo em conta a especificidade da proposta –, apresentou-se à audição com “um monólogo super grotesco” de "A Comédia da Marmita", que trabalhara durante dois anos no contexto escolar e que lhe valera rasgados elogios do corpo directivo.

“Decidi fazer de velho”, lembra. “Pintei um dente de preto, levei um lençol e fiz uma coisa mesmo à velho – só faltava a bengalhinha. Foi divertido e essa ingenuidade era engraçada.” Hoje, confessa, até gostava de “recuperar um pouco a ingenuidade desse tempo”. A audição não era para ele um momento de “tudo ou nada”. E talvez isso tenha ajudado. Sílvio Vieira não cresceu a sonhar com o teatro e e a alimentá-lo como uma “paixão desde miúdo”. Se não tivesse sido seleccionado, acredita, não teria perdido muito tempo a lamentar-se e teria aderido com igual entusiasmo a qualquer outro plano que lhe ocorresse.

Só que Sílvio Vieira foi tão convincente nesse momento que lhe abriu as portas da ESTC quanto o seria no seu primeiro ano de curso, altura em que foi escolhido por Luis Miguel Cintra para integrar o gigantesco grupo de 60 amadores que levou à cena "Ilusão", de Federico García Lorca. A experiência, no seu primeiro contacto com a histórica companhia Teatro da Cornucópia, revelar-se-ia tão intensa que, na derradeira noite, durante o banquete que celebrava aquela aventura teatral, o jovem actor não conseguiu segurar as emoções. “Foi um espectáculo particularmente especial porque era com amadores, pessoas que estavam só a vestir a camisola, e afeiçoei-me muito àquela gente”, recorda. “No final, meti-me num canto e chorei imenso. Estava a ver aquelas pessoas todas a conversar e a pensar que nunca mais iria vê-las.”

Acabou a ser consolado por Luis Miguel Cintra – “acho que ele nem devia saber o meu nome, confundia-me sempre com o Bernardo Souto e o André Marques, porque fazíamos todos de lobos”, diz –, como cúmulo de um período de emoções fortes e enormes descobertas. Ainda no primeiro semestre da ESTC, Sílvio estava apenas “a tactear” esta vida, a perceber o que significava para ele ser actor e sem certezas de que aguentasse os três anos do curso. Mas um par de meses depois de terminar "Ilusão" recebia um email do director da Cornucópia a convidá-lo a juntar-se ao elenco de "Pílades", a encenação de Cintra para o texto de Pasolini.
O espectáculo levaria Sílvio Vieira a pisar pela primeira vez as tábuas do palco da Sala Garrett, do Teatro Nacional D. Maria II, em Novembro de 2014. Depois disso, havia de continuar a trabalhar com a Cornucópia até aos últimos dias da companhia (em "Lisboa Famosa, Portuguesa e Milagrosa" e "Hamlet", mas também em "Um Dom João Português", que Cintra dirigiu num projecto da Companhia Mascarenhas-Martins), acumulando vários trabalhos com a licenciatura – fez também "Menos Emergências" com Ricardo Neves-Neves ou "Nao d’Amores" com Ana Zamora –, o que o obrigou a dilatar um pouco mais no tempo a conclusão do curso. Tanto assim que, quando surgiu a oportunidade de integrar a equipa de estagiários do Teatro Nacional na temporada passada, Sílvio teve de colocar em cima da mesa um par de indisponibilidades decorrentes de compromissos já assumidos, mas que não levantaram qualquer problema à sua integração e à sua dedicação.
No seu caso, por coincidência, esses compromissos implicaram também a participação na peça "E Todas as Crianças São Loucas", da jovem companhia As Crianças Loucas, a que também pertence, e que foi chamada a integrar o Ciclo Recém-Nascidos do Teatro Nacional. Ao lado dos colegas, Sílvio iniciou o estágio com a participação nas Leituras Encenadas, durante o fim-de-semana da abertura de temporada, transitando de imediato para o elenco que estreou "Quarto Minguante", o texto de Joana Bértholo que se tornou no primeiro espectáculo a sair do Laboratório de Dramaturgia que Rui Pina Coelho dirige desde 2013. “Não tivemos muitos momentos mortos”, conta. “Estivemos quase sempre a trabalhar: saímos da Leituras Encenadas e começámos os ensaios do "Quarto Minguante"; depois tivemos as récitas do "Quarto Minguante", seguiu-se a pausa de Natal e começámos os ensaios do "Frei Luís de Sousa"; depois começámos as digressões das duas peças”.

Através da Rede Eunice, acabou por viajar com o Nacional por vários teatros do país, experimentando uma vida mais prolongada dos espectáculos e o encontro com públicos diferentes. O estágio seduziu Sílvio também enquanto “oportunidade para perceber o funcionamento da máquina do Teatro Nacional – porque agora é muito raro trabalharmos em sítios com estas grandes máquinas e que têm os seus próprios ateliers de figurinistas e de cenografia.” Numa época em que se pede aos actores que sejam um pouco de tudo – produtores, encenadores, cenógrafos, técnicos de luzes e de som, etc. –, aqui Sílvio pôde ser apenas actor, mas com um olhar atento sobre algumas destas áreas, disponível para absorver outros conhecimentos que lhe possam ser úteis enquanto criador na sua própria companhia, chamada Outro.

O mais revelador e surpreendente para si talvez tenha sido, ainda assim, perceber como o trabalho numa equipa tão completa pode ser harmonioso e um espaço de afectos e de cumplicidades. E essa experiência é o mais reconfortante empurrão num início de carreira que, no caso de Sílvio, segue já carregado de histórias.



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