A Morte de Danton

Teatro D.Maria II

A Morte de Danton
A revolução ainda não acabou – ou será que sim?

Gonçalo Frota

E, no fim, Danton morre. Pode parecer spoiler, mas, a sê-lo, é da responsabilidade de Georg Büchner, que coloca logo a notícia da morte do seu protagonista no título da peça. Mas é também culpa dos livros de História (ou da Wikipédia) ao não esconderem que o advogado francês George Danton acabou com o pescoço na guilhotina depois de ser considerado inimigo da República francesa. Sabendo, portanto, que Danton morre, o que nos interessa é, afinal, descobrir por que razão desaparece e o que o conduz a esse triste desfecho. Ou então o que nos interessa está nas entrelinhas de tudo isto.

Escrevia Büchner, numa carta citada pelo excelente manual de leitura publicado pelo Teatro Nacional de São João (onde a presente encenação de Nuno Cardoso se estreou em Setembro de 2019), que à época da criação de “A Morte de Danton“ andava “a estudar a história da Revolução”, sentindo-se “aniquilado sob o terrível peso do fatalismo da História”. “Cada indivíduo”, acrescentava ainda, “é apenas espuma na crista da onda; a grandeza, um puro acaso; a força do génio, um jogo de fantoches, uma luta ridícula contra uma lei de ferro: reconhecê-la é o máximo que podemos alcançar, dominá-la é impossível.”

Quando primeiro vemos Danton (interpretado por Albano Jerónimo) em palco, não é um homem fadado para grandes feitos que encontramos. Danton está aos pés de Julie, corteja-a, não é ainda o homem que só mais tarde se levantará na interminável batalha da luta de classes. “Somos como paquidermes, apenas roçamos um no outro o couro ressequido. Estamos muito sós”, diz ele a Julie. “Conhecemo-nos um ao outro? Seria preciso abrirmos o crânio e arrancarmos os pensamentos às fibras cerebrais.”

"A Morte de Danton" inicia-se, portanto, num momento de celebração, um momento em que se discute o rumo a dar à Revolução Francesa (iniciada em 1789), à sua consumação na República e ao papel que deve caber ao Estado. Diz então Camille, que será executada ao lado de Danton, que “o Estado deve ter a forma de uma veste transparente, bem ajustada ao corpo do povo. (...) Não nos cumpre cortar-lhe o saiote a nosso gosto. Aos que pretendam cobrir com um véu de freira os ombros nus da mais adorável das pecadoras, a França, é varejar-lhes os dedos.” Camille desafia Danton a tomar a palavra na Convenção que se aproxima, mas este, precavido, sabe que ainda é demasiado cedo e ainda podem acabar todos com os dedos queimados numa fornalha que ainda arde.

Escrita em 1835, ainda a memória da Revolução Francesa estava fresca, “A Morte de Danton” está imersa numa série de referências e de personagens reais (entre as quais Robespierre, o principal perseguidor dos “inimigos da Revolução”, posterior Presidente da Convenção Nacional e guilhotinado não muito depois) que hoje poderão parecer dificultar a relação com aquilo que vemos em palco. Mas basta suspender, por momentos, o peso histórico destes nomes e aquilo com que ficamos é um movimento demasiado familiar nas nossas vidas – a profunda divisão entre aqueles que fazem e os outros que mandam; entre quem inventa as regras e quem tem de cumpri-las. E é por isso que logo ouvimos o povo virar-se contra a aristocracia depois de deposto o rei: “O vosso estômago sente os bramidos da fome e o deles a indigestão. Vós tendes buracos nos gibões e eles casacas quentes; vós tendes calos nas mãos e eles punhos de veludo; vós trabalhais e eles não fazem nada; vós acumulais e eles roubam. (...) Morte a quem não tem um buraco na casaca!”

Na cabeça, soa-nos também “Remendos e Côdeas”, a canção de José Mário Branco, sob o signo musical de Brecht e Weil: “Sempre que se rompe o casaco do povo / Aparecem uns doutores que descobrem / Que assim não pode ser / Há que achar remédio / Seja lá como for // Vão então negociar com os senhores / Enquanto cá fora os trabalhadores / Ao frio esperam que eles voltem triunfantes com / Um belo remendo // Remendo sim pois bem, mas onde é que ficou / O casaco todo?”

Primeiro gesto

“A Morte de Danton” é o primeiro grande gesto artístico de Nuno Cardoso enquanto director do Teatro Nacional de São João. E é um gesto artístico consciente de pegar num texto de enorme peso e vincada violência, de visceral questionamento das revoluções e das suas esperanças e falhas crónicas, de como uma revolução, por obrigar à imposição de uma mudança radical de paradigma, quase parece fracassar a partir do momento em que vinga – a deposição do modelo anterior acontece; a instauração de um novo modelo nunca é consensual. Se é verdade que a abolição da monarquia francesa dá lugar à santíssima trindade “liberdade, igualdade e fraternidade”, modelar para toda a Europa, entre os revolucionários dá-se depois a cisão entre os girondinos e os jacobinos – liderados, precisamente, por Danton e Robespierre, antes de também eles divergirem – e apoiados pelos operários sans-culottes.

Büchner escreveu “A Morte de Danton” aos 21 anos, tendo morrido de tifo aos 23. Danton tinha 34 quando foi executado, cinco anos após a Tomada da Bastilha. Nuno Cardoso tinha a idade de um jovem estudante da Universidade de Coimbra quando se cruzou com o texto e, confessa no manual de leitura, “a revolução e a utopia, a vertigem de morte e de vida, o terror e a liberdade, o prazer e a ascese, foi tudo lido como texto revolucionário e não como peça de teatro”. A impressão causada pela peça foi tão intensa que, diz ainda, largou a Faculdade de Direito, largou Coimbra, ficou com Büchner – autor do qual encenará já, em 2005, o inacabado “Woyzeck”. Danton ficou-lhe como uma espinha atravessada, com tanto de sedutor quanto de assustador. Era praticamente um texto sagrado – a que teria de chegar, mas em que temia tocar.

Ainda não acabou

Quando se encontram os dois, Robespierre defende que “a revolução ainda não acabou; quem deixa uma revolução pela metade cava a sua própria sepultura”. E acrescenta que “há que punir o vício, e a virtude tem de se impor mediante o terror”. Danton, por seu lado, não quer ouvir falar de punições e de virtudes, e critica o outro por nunca ter tocado em dinheiro ou contraído dívidas, por nunca se ter embriagado ou deitado com uma mulher. “Tanta rectidão, Robespierre, é nauseabunda”, diz-lhe. “Eu teria vergonha de me passear entre o céu e a terra trinta anos a fio com o mesmo aprumo moral estampado na cara, só para ter o prazer miserável de considerar os outros mais indignos do que eu.”

Há uma noção de mundo, maior do que a política, que os separa. E se tornará mais incontrolável e flagrante à medida que os dois avançam pela história e pela História. Robespierre defendendo uma revolução mais musculada e radical, Danton menos impositivo, mais moderado. Diante das turbinas gigantes que compõem o cenário desta revolução em curso, havemos de assistir a discussões políticas e filosóficas, e às mais caricaturais demonstrações de vacuidade popular. Como se o povo, garantidos os mínimos, se desligasse dos máximos. No final, quando Danton morre, por fim, é também essa ideia de revolução que sai desalentada. Porque as escolhas implicam sempre perdas e a sensação de que algo ficou pelo caminho. O que é diferente de se achar que o caminho terminou.

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