O fantasma do jornalismo passado

Teatro D.Maria II

O fantasma do jornalismo passado
Na redacção do “Última Hora”, o pesadelo é comédia e a esperança (ainda) é futuro

Catarina Homem Marques

“A administração reuniu e anunciou um despedimento colectivo.” É possível que tenha lido ontem esta notícia, ou uma muito parecida, a propósito de algum grupo de comunicação social. Ou há uma semana. Ou pode ouvir a notícia amanhã e não será uma grande surpresa. Assim acontece também na redacção do “Última Hora”, nome de jornal fictício e também da peça de teatro homónima em cena no D. Maria II, escrita por Rui Cardoso Martins e encenada por Gonçalo Amorim. E qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência.

“Nem vos mostro os números. Sem papel não há papel. Sem publicidade, népias. Mas, mas, mas os accionistas são generosos com o dinheiro que tanto vos... nos custou. O jornal vai ser impresso mais uma semana, para a despedida. A última hora do 'Última Hora' nas bancas. Uma semana inteira! Mudem a paginação, o template. Mais fotos, mais vida. Lindo, vamos provar que o novo espírito do jornal está vivo e recomenda-se! Maravilha! Havia uma última coisa, não era?... Ah, temos de fechar a edição duas horas mais cedo, é fácil, é só escrever menos e mais depressa. Vocês conseguem, vocês deixam-me orgulhoso. Ou um terço de vocês, enfim.”

Assim fala Ramires Sá Saraiva, o impiedoso mas entusiasmado administrador, um infeliz clássico das redacções modernas, aquele que contabiliza cliques, que acha que a secção de cultura se pode dedicar mais à gastronomia, que quer artigos sexy e títulos que perguntam mas nunca informam e jornalistas que se voluntariem para “um acordo”, a única forma de salvar o emprego dos outros todos, ou pelo menos é esse o incentivo.

Em “Última Hora”, este administrador surge, qual fantasma do jornalismo futuro, posto perante um director, Santos Ferreira – ou Miguel Guilherme –, e perante uma directora-adjunta, Sousa Neves – ou Maria Rueff –, que são ainda, ou ainda querem ser, o fantasma do jornalismo passado, tal como o repórter de guerra, Furtado Gomes (como Joaquim Furtado? Como Adelino Gomes? Ou tudo isto não passa de coincidência?), do tempo em que estes ainda existiam. Mas posto também perante um monte de estagiários, da influencer à papparaza, passando por aquela que, apesar de tudo, apesar de nem receber para trabalhar, ainda acredita no jornalismo, ainda verifica factos, ainda vai atrás de histórias – todos eles uma espécie de fantasma do jornalismo presente.

Com tantos fantasmas em palco, é então isto uma comédia? Se mais parece um requiem do lugar mítico que para tantos será ainda a redacção de um jornal, isto é para rir? É, sim, mesmo quando parece um filme de terror. Não só porque rir é o melhor remédio, de acordo com o clichê, mas também porque o jornal “Última Hora”, na sua luta, no seu dilema, no seu choque de fantasmas e de épocas e de possibilidades, é também um lugar de esperança. Quando uns desistem, outros resistem. Quando começam a circular as notícias de uma morte, pode ser que sejam exageradas, ou melhor, que sejam fake news. E é por isso que esta peça não fala apenas para quem faz ou fez jornalismo – fala para qualquer trabalhador posto perante desafios cada vez mais comuns, e fala para qualquer pessoa que consiga ver na falência do jornalismo o símbolo da falência de um sistema, e um sintoma de falência da própria democracia.

“Alberto, o tanas. Nesta redacção não se usam nomes próprios, somos soldados rasos, Sousa Neves! Sen-hop!” Nas suas secretárias, no terreno, no palco do Teatro Nacional D. Maria II, os jornalistas são ainda “camaradas”, há cheiro a fumo de tabaco, pilhas de papel, garrafas escondidas e bifes que se comem de madrugada, depois do fecho, como nos velhos tempos. Mas isso não significa que “Última Hora” seja uma peça saudosista, descrente, voltada para trás. É, aliás, no presente, que a redacção afinal prevalece, usando o mais velho truque que o bom jornalismo vai trazendo na manga, apesar de cortes, downsizings ou oferta de brindes semanais – a procura da verdade. Que se mantenham então ligadas as rotativas.



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