Um jogo de gato e rato entre verdade e mentira

Teatro D.Maria II

Um jogo de gato e rato entre verdade e mentira
"a verdade é, fatalmente, também uma questão de perspectiva"

Gonçalo Frota

Não há muitas coisas que caiam do céu. Por isso, sobressaltamo-nos, logo nos primeiros segundos de Fake, quando chove um corpo sem vida no palco. Mas sobressaltamo-nos apenas pela surpresa. Porque sabemos que estamos no teatro e estabelecemos um pacto que interrompe a realidade e a deixa do lado de fora da sala, e porque aquele corpo é tão obviamente falso que, apesar do sobressalto, é mais propenso a fazer soltar gargalhadas do que estimular gritos assustadiços. E, assim, ainda mal começámos a entrar em Fake, a peça que Inês Barahona e Miguel Fragata criaram para estrear no Teatro Nacional D. Maria II – que a pandemia resolveu atrasar nove meses –, e já sabemos muito bem que, a partir de agora, começará todo um jogo de gato e rato com a verosimilhança.

Depois do corpo se estatelar, com uma tristeza seca, no chão do palco, o ecrã que temos diante de nós (e que esconde ainda os actores de carne e osso) mostra-nos os rostos de quatro figuras debruçadas sobre Daniel. Daniel é, como possivelmente as qualidades detectivescas do/a leitor/a terão já intuído, o nome do pobre coitado que choveu lá de cima como uma ave cujo coração se fartou de trabalhar em pleno voo. São quatro rostos que, na mais bela tradição dos mistérios de Agatha Christie, passaremos a conhecer como quatro suspeitos de estarem por detrás desta malfadada morte. Como sempre acontece, todos eles com motivos suficientemente credíveis para imaginarmos como possíveis culpados: do cunhado de Daniel (Duarte Guimarães) à sua amante (Carla Galvão), do seu aluno nas aulas de culinária (João Nunes Monteiro) à actriz principal (Anabela Almeida) da adaptação televisiva do livro escrito pela sua mulher – um bestseller com o sugestivo título Como Assassinar o seu Marido. Aos quatro falta juntar-se – uma vez mais, confiamos no seu aguçado poder de dedução, caro/a leitor/a – Norma B., a escritora que Daniel jurara amar até à morte (ups...).

E Norma B. só não aparece entre estes rostos iniciais que olham de cima e intrigados para aquele que um dia foi Daniel porque, na verdade, ainda está a decorrer o casting para a actriz a quem caberá esse papel. Esse casting faz, afinal, parte do espectáculo a que assistimos. Ao mesmo tempo que vamos conhecendo melhor as quatro personagens acima referidas e as suas motivações, o ecrã que estará sempre em cena vai-nos mostrando as provas prestadas por um grupo heterogéneo de actrizes – Beatriz Batarda, Cirila Bossuet, Isabel Abreu, Madalena Almeida, Márcia Breia, Sandra Faleiro, Sílvia Filipe e Teresa Madruga – tentando convencer os criadores do espectáculo a confiarem-lhe esse papel de peso em Fake. E para que não pensemos que há apenas uma verdade num espectáculo todo ele enredado em falsidades, até essa escolha irá variar de sessão para sessão – sim, porque entre as actrizes que disputam no ecrã o papel de Norma B., há sempre uma (a escolhida) que ganhará depois vida em palco.

Inspirados por um mundo tomado por fake news, teorias da conspiração e factos alternativos, em que só com uma apertada vigilância cada cidadão consegue navegar num mar de informação contraditória, Inês Barahona e Miguel Fragata quiseram trabalhar sobre essa linha difusa entre verdade e mentira. Algo que estendem ainda à própria linguagem artística adoptada, numa ambiguidade estilística que pertence ao teatro e ao cinema. E isto porque os actores são filmados em permanência e podemos sempre seguir a peça pelo grande ecrã.

O dispositivo, claro, não é inocente (palavra escolhida a dedo nesta peça de culpabilidades à espreita): ao colocarem teatro e cinema no mesmo barco, Inês e Miguel convidam o espectador, sentado confortavelmente na plateia da Sala Garrett, a dividar a atenção entre aquilo que os actores fazem em palco e aquilo que as câmaras e a realização decidem mostrar. Um exemplo prático: quando o aluno de Daniel prepara um suculento bife tártaro para o seu programa de televisão, as câmaras mostram-nos a confecção a avançar em passos acelerados, enquanto na sala assistimos às trocas de produtos já preparados longe do olhar indiscreto das câmaras. O que faz com que um bocado de carne picada de vaca se transforme num prato acabado no espaço de segundos. O cinema mostra-nos apenas aquilo que quer – da fabricação artificial de chuva ao close up que nos permite perscrutar o estado emocional de uma personagem; o teatro mostra-nos a acção mas também aquilo que acontece ao seu redor.

Quer isto dizer que, desde o primeiro momento, Inês e Miguel estão a lembrar-nos de que tudo aquilo que temos diante dos nossos olhos é passível de ser manipulado e que a verdade é, fatalmente, também uma questão de perspectiva. Neste trânsito sinuoso entre verdade e mentira, a história de Norma surge também como exemplo da muito contemporânea pressa em fazer corresponder a indícios de culpa a correspondente condenação sumária (queiram reparar como há uma linha ténue também entre o ambiente de casting e o de interrogatório policial), ao mesmo tempo que nos faz pensar, uma vez mais, que poder tem a ficção para influenciar e ditar o curso da realidade. Ou, melhor ainda, que potencial existe na ficção para que se confunda com a realidade, que capacidade existe em cada um de nós para distinguir uma da outra. Porque o livro de Norma B., ela que escreveu em detalhe sobre a maneira de se descartar do marido, cria, desde logo, essa magnífica confusão entre os dois mundos: pode alguém ser culpado pela confirmação dos acontecimentos da sua ficção?

Às tantas, vai a peça já avançada, as quatro personagens iniciais recebem a actriz escolhida para encarnar Norma B. e tratam de pôr o assunto em pratos limpos: aquilo que está em jogo não é saber quem realmente é o criminoso, mas sim quem é que o mundo decidiu, quem é que o mundo precisa que seja culpado, quem serve melhor essa condenação popular que tem lugar nas redes sociais, nas teorias que animam e inflamam as opiniões e que servem mais adequadamente a narrativa mediática. A verdade existe, claro, mas pode sempre ser martelada para encaixar melhor na verdade que dá mais jeito inscrever na História. Afinal, a verdade depende sempre de quem a olha, certo? Ou será que isso já se chama outra coisa?

©Filipe Ferreira



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