A nossa alegre casinha

Teatro D.Maria II

A nossa alegre casinha
Pão e vinho e o que estiver sobre a mesa, será para virar ao contrário na nova peça de Pedro Penim

Catarina Homem Marques

Se o texto começar assim: “Quatro paredes caiadas, um cheirinho a alecrim…”, o mais certo é que quase todos os leitores, já a ouvir uma certa melodia interna, saibam que a seguir vem “um cacho de uvas doiradas”, depois “duas rosas num jardim”, “um São José de azulejo” e por aí fora. Não é assim por acaso. Não se chega a este coro por acaso. Esta música não existe no imaginário coletivo sem consequências. E há ainda muito mais que se pode dizer sobre o “pouco poucochinho” que alegadamente basta para nos alegrar, como se mostra em “Casa Portuguesa», a primeira encenação de Pedro Penim enquanto diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II – uma peça que está em cena até 16 de outubro.

O que acontece é que as paredes de uma casa, caiadas ou não, têm sempre muitas camadas. Reais ou simbólicas. Camadas que se descascam, ou que se enfeitam, ou que se enchem de humidade a um canto, oposto a um outro canto onde bate sempre a luz – a casa, ou pelo menos esta casa, é complexa, e logo num teatro que em breve terá de sair durante uns tempos da sua “casa”. A habitação em palco está, além disso, um pouco de pantanas. Tem o lustre no chão, está suja, as paredes estão grafitadas e rachadas. É isto uma casa? Ou, afinal, o que é uma casa? É a pergunta que se vai erguendo desde os primeiros acordes das Fado Bicha (Lila Tiago e João Caçador), e que se mantém a pairar a partir do momento em que o Rapaz (Sandro Feliciano, ator a estrear-se profissionalmente nesta “casa”) abre a porta pela primeira vez.

A casa não está desabitada. No centro, como convém, está a família. Ou melhor, no centro está o «pai» de família, o Homem, interpretado por João Lagarto. O próprio texto, escrito também por Pedro Penim, nasceu assim – na continuação de outra reflexão familiar, com a peça “Pais & Filhos”, e até da leitura do diário de guerra do pai. Aqui, é dia do pai e a família aparece para almoçar – a filha (Carla Maciel) e o neto (Sandro Feliciano). Ou o pai está internado e a família aparece para tratar da venda. Ou a filha tem um namorado novo e aparece, em família, para que todos se conheçam. Seja qual for o motivo, a família aparece e abraça-se, ou discute sobre o #oshomenssãomerda, ou pergunta por uma carta antiga e um amigo chamado Kafka que desapareceu durante a guerra, ou fica ali, cheia de silêncios.

“Há esta ideia da célula familiar como estrutura fundamental da sociedade capitalista em que vivemos, alimentando-a e alimentando-se dela, de como a estrutura capitalista depende totalmente da sua existência – uma existência com uma série de regras e de formatos específicos – e como o discurso sobre o desmantelamento da família não é um desmantelamento no sentido da aniquilação das famílias tal como as conhecemos e amamos, mas um reenquadramento do que essa ideia pode ser à luz de uma sociedade mais justa”, esclarece Pedro Penim na Folha de Sala.

Não bastaria, enquanto as camadas de cal continuam a cair neste movimento teatral de implosão de tantos conceitos “familiares”, que as paredes tivessem ouvidos.

Em “Casa Portuguesa”, um pai não é só um pai – é um espetro de vários pais, de normatividades várias, de uma ideia de pai da nação e de país que já não serve. Mas um espetro também não é só um espetro – há, claro, como em todas as famílias, ausências espetrais; e há, como em todas as casas, vidas passadas; mas há também neste peça fantasmas mais partilhados: das histórias que estão por contar sobre guerra colonial, das vozes que continuam sem voz, daquilo que se acha que deve ou não ser dito no palco de um teatro nacional, e, lá está, o fantasma da própria ideia clássica de família, ao mesmo tempo invocado e exorcizado.
E no fim, com ou sem promessa de beijos, quando chegar a hora de cada um voltar para a sua casa, a ideia é que tenha havido algum abalo nos alicerces.

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